Tuesday, September 13, 2005

A bailarina( textinho de 2001)


A sala continua quente, as velas continuam acesas indicando que a festa ainda não acabou, mas há um bilhete no meio do tapete.
Espreitei o tapete conduzida pelo teu braço, a frase que aí consta é um susto, um alto resgate impossível de pagar, uma ameaça, uma insanidade, um grito em àrabe no meio da Cânara dos Comuns, palmas quando o recital ainda não terminou; Légível, mas incompreensível.
A festa não terminou, vi-te dançar ainda há pouco. Dançar com sorrisos, dançar com palavras, tuas, minhas, dos outros. Com menor ou maior ritmo.
O bilhete diz:" Não te levo para casa." e quase invisível a tua assinatura como remate da pequena folha.
Podia ter desmaido, morrido, berrado, emudecido, chorado ou rido alto.
Gostava de não ter unido as palavras, de não saber ler de todo, de apagar as pretas palavras do papel branco. E outras que se lhe seguiram...Mas ouço a música, sinto o calor na pele, vejo as luzes que (ainda)brilham.Por isso sei onde estou. Bailo no salão de festas. Como outros.
Hoje és o terrorista. Mas as minhas palavras são a mala com o dinheiro, a nitroglicerina e a bandeira branca.
Vi o papel conduzida pelo teu braço, a meio de uma dança leve.A sala continua com calor, luz e som. ainda que em actividades terroristas, danças bem. és um bom par e canto-te um refrão ao ouvido como resposta ao estalar de dedos que adoptaste como tique e ao sobrolho franzido que tomaste como máscara.
Roupa escura, óculos escuros, cara fechada em dura expressão, assim se mostrou o bailarino que sem licença de porta de arma envergava uma arma potente: um indicador que mostra um improvável papel no chão, um detonador de sentimentos alheios. E a indumentária que trazia ajudava-o a assumir o papel escolhido para levar à cena. Sim, talvez se o bailarino envergasse um farfalhudo bigode,fosse tudo mais fácil!
Nos segundos que medeiam entre um passo e outro na dança, agora mais lenta em virtude do susto,as dúvidas assaltam a bailarina.
"Apetece-me dançar..." diz-lhe ela baixinho, para que ele sinta e não ouça;para que não o tome como um ataque; para que não mostre ele sinal de cansaço.
"Estou cansada da tua ausência, da luta pela tua presença, de analisar gestos, de ler no meio-dito.E vale a pena? Ainda sim, ainda acho que gastas XL na alma."murmura sem que sinta ou ouça.
As dúvidas e o terror das certezas de cor escura começam a causar dores à bailarina que se serpenteava em saltos altos. Cada passo exige agora um pouco de pensamento estratégico, enquanto horas atrás, apenas o coração marcava o ritmo.
a bailarina gosta de dançar. a bailarina gosta é de dançar. A bailarina gosta da música. Apesar do medo, do reflexo deste em dores de pés e algumas passadas mais desengraçadas, apesar das gotas de suor que agora nota no vestido, apesar de começar a reparar nos outros do salão pela primeira vez, apesar de tudo, viver para a bailarina é dançar, sentir o encantamento da música, dançar sempre, no topo do pátio, no coreto ou no arame. Dançar sempre.
Respirou fundo à medida que a música se tornava um pouco mais lenta, um pouco menos audível, preparando-se para a outra faixa. A transição entre um música e outra não chega a provocar silêncio, apenas um enfraquecimento na intensidade do volume, sem parar,tal qual a continuidade que há na vida.
Agora que o ritmo da dança abrandava, encontrava um momento para olhar em redor e observar o salão de baile em que decorria a sua vida. "De que é feito este espaço? O que me prende aqui nesta sala de dança?"- parecia perguntar o olhar da bailarina, olhar esse que se serpenteava em volta, girando e girando numa estranha coreografia com os objectos, com um ritmo próprio, acompanhando ou mesmo substotuindo o acto que há pouco tinha lugar na pista.
Mas na pista de quê se movimentavam esses olhos caçadores?
Susto e cansaço à bailarina não tinham provocado a imobilidade, o choro convulsivo ou a cegueira para a beleza do mundo. A dança continuava, já. Ela bailava com o olhar.

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